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A Mulher Negra na Pintura e o Simbolismo dos Sonhos
Texto por Júlia Anadam, para documentário no canal Musa Arte, pela produtora Opoente Filmes. Outubro, 2024.
Através dos pincéis e tintas acrílicas de Nina Satie, 29, surgem telas com criaturas híbridas, que não se dividem entre humano e animal, mas se multiplicam entre o corpóreo e o fantástico, com mãos e também cascos, pés e também asas. Seres da fauna e da flora, que podem ser cabras, mariposas, flores e touros, se abraçam e se misturam com silhuetas que evocam o feminino fluido e parecem transcender o mundo físico. Nessa dinâmica elementar, entre aterramento e espírito, Nina elabora uma emancipação do corpo feminino negro através de sua expressão espiritual. Suas telas de grandes proporções absorvem quem vê, enquanto as menores abrem portais íntimos para outras realidades.
O tom púrpura, conhecido por simbolizar o mundo espiritual, mistura-se com marrom avermelhado, laranja, rosa, preto e branco – esse último surge em véus, colares de contas e detalhes esvoaçantes. Os títulos das obras dão pistas sobre o universo do qual se originam: “Beijo de pétalas”, “Se eu emergisse da profunda e salgada terra negra” e “Em sangue e pureza” são exemplos dos temas que nos conduzem por suas dimensões sutis.
Nina nasceu em São Paulo e cursou dois anos de Artes Visuais na UERJ, mas ao se deparar com as narrativas convencionais do ensino de arte, decidiu trancar sua matrícula e buscar trocas mais profundas em sua cidade natal. Hoje ela divide ateliê com outro artista na Zona Norte, com quem também tem um projeto musical, o PITCHPEARLS. Em seu quarto, títulos como O Livro dos Símbolos e Art Nouveau dividem espaço com um jarro de flores, um baralho de tarô, um carrinho de tintas e um fone de ouvido, evidenciando a interseção entre o místico e o real em sua pesquisa.
Na faculdade, os artistas que compõem o currículo tradicional do ensino de artes não chamaram a atenção de Nina. Foi um encontro anterior, com o universo ritualístico e simbólico da cubana Belkis Ayón, que fez ela se encantar e se reconhecer no ofício. Com Belkis, Nina viu que era possível pintar mistérios. Percebeu também que sua pesquisa poderia reverberar seus atravessamentos, entrelaçando questões de identidade, como raça, classe e gênero, mas também delineando seu processo individual, se assim quisesse. Por fim, entendeu que suas criações poderiam atravessar o tempo e tocar a vida de outras pessoas, da mesma forma que Belkis fez com a dela.
A psicologia, especialmente o processo de individuação e de construção de identidade, assim como as mitologias egípcias e afro-diaspóricas e o próprio ciclo da natureza também são inspirações para Nina: através delas, traça paralelos com sua própria jornada interior e delineia uma busca simbólica por auto descoberta e integração. As figuras ambivalentes de suas obras recriam um imaginário feminino negro que evoca ancestralidade e transcendência, enquanto também oferecem uma perspectiva crítica sobre a representação desses corpos no mundo.